O combinado entre os alunos do nono ano do colégio Santa Maria, na zona sul de São Paulo, era não ficar de recuperação para que todos pudessem ir à viagem de formatura em Rio das Pedras, no Rio de Janeiro. Daí, veio a Covid-19 e os planos foram cancelados -assim como os do resto do mundo.
Mateus Matuck, 16, era um dos alunos que estavam para se formar no ensino fundamental quando a pandemia foi declarada, em março de 2020. Com isso, a rotina de levantar da cama às 5h50, fazer lanche e ir com o irmão para o colégio foi substituída por acordar cinco minutos antes do início da aula e acompanhar as aulas online.
“Aula online é um saco e a palavra que pode definir meu nono ano foi frustração”, diz ele. Além da queda do desempenho escolar, a pandemia para jovens da faixa etária de Matuck veio em um momento em que eles normalmente lidariam com hormônios, mudanças no corpo, festas de debutantes, planejamento de viagens de formaturas e estresse com vestibular.
Adolescentes viram os planos e expectativas criadas dos últimos dois anos substituídos, em grande parte, por aulas online e isolamento social. “A gente tá numa fase de sair e querer curtir”, diz Matuck. “Era bom ir a uma festa na sexta-feira ou sair para se encontrar com os amigos. Ficar sem contato com uma mão amiga foi bem difícil.”
Apesar das decepções e planos adiados, ele relata que não deu muito tempo para a tristeza. A distância de alguns colegas foi uma espécie de prova de fogo para mostrar que aqueles que permaneceram ao seu lado são os “amigos verdadeiros”.
Se sair com os amigos ficou difícil, paquerar foi quase impossível. “Fiquei mais recuado nestes anos. Então, a questão do flerte ficou mais difícil”, diz.
Ele avalia ainda que, apesar das preocupações relacionadas à Covid-19 e de se considerar uma pessoa ansiosa, o isolamento foi positivo em alguns aspectos. “Ter um tempinho a mais com meus pais foi essencial para me ajudar a amadurecer”, reflete ele, que agora encara um ensino médio com 22 disciplinas e o retorno presencial.
Enquanto Matuck parece lidar bem com os imprevistos da pandemia, especialistas se preocupam com as consequências da restrição de convivência entre jovens. Paula Peron, psicanalista e professora da PUC-SP, afirma que entre as principais conquistas da adolescência estão a diferenciação da família e a vivência em outros grupos.
“Na maioria das vezes, é na escola onde vão acontecer essas experiências de diferenciação. E, estando só com a família, é muito difícil fazer essa distinção”, diz Peron, explicando que a importância dessas vivências é para os adolescentes construírem suas personalidades distintas da dos pais ou responsáveis.
“Foi perdida a chance de estar num espaço fundamental como um sujeito separado da família. E com segurança dessa separação”, afirma ela.
Letícia Brito, 18, que vive no Rio de Janeiro e está concluindo a IFRJ (Instituto Federal do Rio de Janeiro), é um exemplo disso. “Eu não costumo ir a festas ou a outros lugares, então era na escola onde eu mais socializava. Foi horrível perder contato total com meus amigos, não é o mesmo pelo celular, de jeito nenhum”, lamenta.
A psicanalista Paula Peron também relata que outra consequência do isolamento está ligada às mudanças hormonais e corporais. “É necessário que elas sejam compartilhadas para que não sejam tão sofridas”, diz. “Não é só compartilhar que ajuda, é bom também ver que tem outra pessoa passando pela mesma coisa que você”
É como se o reconhecimento trouxesse alívio, como mudança de voz ou surgimento de espinhas no rosto. “As transformações foram vividas de forma muito solitária e na adolescência essa dimensão de solidão cria barreiras para o desenrolar do processo”, explica Peron.
Outro efeito que percebeu dentro do consultório foi o do espaço para a intimidade. “Às vezes, o jovem precisa estar longe da família para conseguir certas experimentações. Não poder ficar longe dessa influência limita as experiências sexuais.”
Larissa Teixeira, 17, que vive em São Paulo, ficou cinco meses sem encontrar o namorado. “As minhas primeiras experiências foram com ele e é tudo muito novo ainda. Ficar longe um do outro foi bastante difícil”, relata ela, que já completou dois anos junto com o companheiro.
Aluna do terceiro ano do Ensino Médio da Escola Estadual Professor João Borges, ela lamenta o tempo perdido longe dos amigos. “Me incomoda o fato de não ter aproveitado mais. Agora, vou me formar e as responsabilidades começam a aparecer. Cada um vai seguir seu caminho e me incomoda ter perdido dois anos de memórias que poderíamos ter criado juntos”, diz.
Durante o período em que teve aulas remotas, ela calcula que se encontrou apenas três vezes com os colegas. Agora, de volta ao presencial, retomou o contato. “Me faz muito bem, mas me assusta que esse talvez possa ser o último ano disso”.
Assim como Teixeira, Ana Luiza Seidenberger, 17, também não conseguiu criar muitas memórias com amigos durante o ensino médio. Quando as aulas foram suspensas devido à Covid-19, ela trocou de escola e conheceu os novos colegas online.
“O segundo e o terceiro colegial foram um borrão para mim, perdi a noção do tempo”, relata ela, que foi apenas no final de 2021 para as aulas presenciais. Agora, ela está cursando publicidade no Mackenzie. Porém, o início da vida universitária não tem sido como ela planejou, já que as aulas seguem remotas até, ao menos, março.
Seidenberger não se adaptou bem às aulas online e afirma que teme que a faculdade seja uma continuação dos últimos anos na escola. “O início da faculdade me remete muito ao ensino médio e tenho medo de ser tão traumático quanto foi.”
A psicanalista Maria Gabriela Guidugli relembra que, no início da Covid-19, a impressão geral era de que os adolescentes seriam os que mais se adaptariam ao mundo pandêmico, já que tiveram que migrar para um mundo virtual que já estão acostumados. “De fato, eles se adaptaram mais rapidamente do que os adultos, mas também denunciaram primeiro os efeitos da pandemia sobre a saúde psíquica”, analisa ela.
No consultório, ela afirma que é recorrente ouvir dos jovens a frase “estou perdendo os melhores anos da minha vida”. “A sensação de perda destes anos vem muitas vezes acompanhada de crises de angústia”, afirma ela.
Outro aspecto perdido neste período foi o direito de transgredir. “É natural da adolescência transgredir para explorar e colocar o sujeito no mundo”, diz Guidugli, que encara pequenas transgressões, como chegar atrasado na aula ou desenhar enquanto o professor fala, uma forma de diferenciar o jovem da criança pequena que só funciona dentro das regras necessárias.
“Houve um olhar 24 horas por dia sobre os adolescentes, que precisam de um tempo longe dos pais. Há uma perda de privacidade e desse espaço”, diz.
Ainda é cedo para dizer os efeitos em relação a esta juventude que passou dois anos reclusa, diz a psicanalista, que pondera que adolescentes também são capazes de se redescobrir. “Eles estão construindo alternativas para se sentirem pertencentes a algo. Se não é na faculdade, porque não estão frequentando, podem encontrar em um grupo no prédio e em amigos da escola ou até de jogos online.”






