Todos os casos de Covid relacionados à Copa América, examinados até o momento, são da variante gama, cepa descoberta em Manaus. Os dados são de um boletim consolidado da Conmebol, de 5 de julho, ao qual a reportagem teve acesso.
Pessoas ligadas ao estudo da pandemia no Brasil criticam a falta de transparência nas informações cedidas pela confederação sul-americana e pelo Ministério da Saúde. Isso é tido como um obstáculo para entender os reais efeitos da realização do torneio no país.
A reportagem conversou com pesquisadores da Fiocruz -alguns pediram para não serem identificados-, além de cientistas de outras instituições, que trabalham diariamente com a Covid-19. Nenhum deles foi informado sobre esses detalhes epidemiológicos durante a competição. Eles alegaram saber dos números de casos apenas por meio da imprensa.
A Fiocruz é o braço do Ministério da Saúde responsável pelo monitoramento epidemiológico do coronavírus no Brasil. Seu setor de virologia é credenciado pela Organização Mundial da Saúde para realizar esse acompanhamento.
A Copa América acaba neste sábado (10) com a final entre Brasil e Argentina, no Maracanã, às 21h.
Até aqui, foram 168 casos de Covid detectados entre os envolvidos no torneio. Destes, o sequenciamento genético (exame para identificar a cepa do vírus) foi realizado em 38, sendo que para 22 o processo já foi concluído e o resultado foi de variante gama.
“Me parece uma omissão de dados proposital. O sentido de você fazer a vigilância genômica é você dizer qual é esse perfil genômico circulando para tomar as medidas necessárias”, diz Jesem Orellana, da Fiocruz-Amazônia.
Ele reforça que o fato de pesquisadores ligados à Covid não saberem de tais dados evidencia que se trata de um problema de transparência na informação. “Quando você esconde o resultado ou joga ele para depois do final da Copa América, por exemplo, você está dizendo que fez [o acompanhamento] por fazer, porque o propósito da vigilância é você usar isso para tomada de decisões epidemiológicas. Os pesquisadores têm que ter acesso, é mais um problema de transparência”, completa.
“A gente não sabe isso [os dados]. Deveria saber. Sou da Fiocruz, participo desses comitês [de Covid], e nunca nem ouvi falar deles”, diz a pneumologista e pesquisadora Margareth Dalcomo.
Ela opina que a falta de transparência contribui para uma outra epidemia, a de informações erradas ou de má qualidade. “Diante da gravidade epidemiológica que vivemos, qualquer monitoramento tem que ser divulgado. A transparência da informação científica é fundamental para a sociedade brasileira. Meu pensamento como médica é que toda descoberta deve ser [divulgada], afinal de contas, a Copa América é um evento público”, acrescenta.
“Não sei exatamente porque o acesso [às informações] não chegou a eles [pesquisadores]. Idealmente eles deveriam ter acesso, não sei onde é o problema. Mas se você não tiver a informação, você não sabe o que está fazendo. Toda informação é importante para o conjunto do todo, não ter acesso em geral vai te limitar”, afirma Márcio Bittencourt, epidemiologista do Hospital Universitário da USP.
A reportagem solicitou ao Ministério da Saúde os dados genômicos (sobre as variantes) relacionados à Copa América.
“A Conmebol é responsável pela realização dos testes e pelo sequenciamento genético para análise de possíveis variantes”, respondeu o ministério.
Então foi questionado se as informações de sequenciamento genético são ou deveriam ser repassadas à pasta diariamente e, posteriormente, à Fiocruz. Não houve resposta sobre esse tópico até a publicação deste texto.
Questionada, a Conmebol afirma que faz o sequenciamento genético de estrangeiros envolvidos na Copa América, mas que não realiza o mesmo com os brasileiros que testaram positivo para Covid-19.
“Acho que o principal é isso, para saber se alguém está trazendo ou circulando alguma variante nova. Se tivesse que escolher [quais testes sequenciar], este é o grupo que eu escolheria”, afirma Bittencourt, sobre o fato de a confederação sul-americana fazer o estudo mais avançado apenas nos estrangeiros contaminados.
Por outro lado, há quem considere ser importante a análise dos casos brasileiros. “Faria sentido se eles estivessem vivendo em ilhotas [fazer só de estrangeiros], cada seleção em uma ilha. Como estão em contato contínuo ao longo do campeonato, não faz sentido”, contesta Orellana.
Na quarta-feira (7), o ministro Marcelo Queiroga afirmou que um relatório com os dados detalhados seria divulgado ainda antes do fim do torneio.
Até terça (6), do total de casos, 37 eram de jogadores e membros das delegações, 126 de prestadores de serviços terceirizados e 5 da Conmebol (que inclui arbitragem, médicos e equipe logística, de acordo com a pasta.
“A primeira questão que temos que levantar é que o correto seria fazer o levantamento de todas as pessoas direta ou indiretamente envolvidas no torneio. O rastreamento indiscriminado, testagem em massa. Claro que não do Brasil inteiro, mas poderiam fazer tranquilamente dentro da subpopulação envolvida na Copa América, que não vai passar de 20 mil pessoas”, critica Orellana.
Ele afirma que 168 casos é um número baixo considerando que já na primeira semana do torneio foram registrados mais de 140, e que o coronavírus se espalha rapidamente.
Por isso, aponta que pode haver subnotificação, já que não é feito o acompanhamento da situação de pessoas que possam ter contato com outras envolvidas no torneio.
A variante gama ter sido identificada em todos os exames até aqui é um “alento” para a pesquisadora Margareth Dalcomo, que via grande risco de importação de variantes novas.
A cepa batizada como lambda, por exemplo, foi encontrada inicialmente na região dos Andes e apresenta nos estudos maior perigo do que outras.
“Se só tiver variante gama, o que tem que se pensar é que esse cara está pegando ela aqui e pode levar para fora. Então pode preocupar um país que não tenha muito dessa variante. A pergunta é: ‘Para onde vai quem está pegando o que e de quem?'”, questiona Bittencourt.
Segundo os especialistas, a quantidade de sequenciamentos realizada –38 dos 168 casos, ou 22,6%– não é um problema. Supera, afirmam, a média do Brasil (menos de 1% para o total de confirmados) e de países como o Reino Unido (cerca de 10%).
“Esse é um exame complexo. É um número razoável, 38. O melhor era sequenciar pelo menos metade das amostras. Considerando só os resultados já obtidos, a proporção não chega a 20% dos casos [o mínimo cientificamente válido]” opina Orellana.
“O sequenciamento tem um custo, mas é muito importante neste momento da pandemia no mundo. Teoricamente, você poderia sequenciar todos os casos, mas a Copa América está sequenciando mais de 20%, já é um espetáculo”, completa Dalcomo.