Os Estados Unidos completaram a retirada de suas tropas do Afeganistão nesta segunda (30), um dia antes do prazo limite anunciado pelo presidente Joe Biden. Com isso, encerram a presença militar de duas décadas no país asiático, a mais longa guerra de sua história.
Os últimos aviões decolaram do convulsionado aeroporto de Cabul, o que foi confirmado pelo Pentágono no fim da tarde, após uma operação de evacuação de 122 mil pessoas desde 14 de agosto, véspera da tomada da capital pelo Talibã.
O grupo fundamentalista islâmico volta assim ao poder do qual havia sido expulso pela Operação Liberdade Duradoura, que visava puni-lo por te abrigado e protegido a Al Qaeda, rede terrorista que cometeu os atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA.
Iniciada há 19 anos, 20 meses e 24 dias, a ação consistiu no mais longo engajamento militar americano. Acabou com uma caótica retirada marcada por fiascos: das imagens de afegão caindo dos céus após se agarrar a um cargueiro C-17 em decolagem ao atentado de quinta (26), que com quase 200 mortos foi o mais letal na capital em toda a guerra.
Ao longo das duas décadas, segundo estudo da Universidade Brown (EUA), morreram cerca de 160 mil pessoas (das quais 2.298 soldados americanos, 3.814 mercenários, 1.145 aliados; o restante, afegãos). O custo ficou em US$ 2,26 trilhões, número que o Pentágono coloca na casa dos US$ 1 bilhão.
As ações de combate tiveram seu auge de 2010 a 2012, quando cerca de 100 mil soldados operaram no país. Em 2014, elas foram encerradas e apenas uma força residual permaneceu no Afeganistão, transferindo bases e missões para o Exército local.
Essas forças fracassaram redondamente em conter o Talibã, que após se espalhar pelo país e promover ataques terroristas, aos poucos conquistou espaço pelo interior afegão.
No ano passado, o presidente Donald Trump cumpriu a promessa de desengajar os EUA do que chamava de guerras inúteis e assinou um acordo de paz com os talibãs, acreditando no pressuposto de que o grupo iria negociar seu caminho num governo de coalizão.
Biden foi eleito em novembro e, após assumir em janeiro deste ano, anunciou em abril que cumpriria o acertado -mas sairia até 11 de setembro, não maio como o combinado. O Talibã usou isso de desculpa para rasgar sua parte do acordo.
Iniciou uma campanha pelo interior afegão e cooptou líderes tribais. O resultado foi uma campanha militar avassaladora contra grandes centros urbanos, que em duas semanas viu o país todo capitular e Cabul ser ocupada sem resistência, com a fuga do presidente Ashraf Ghani para Abu Dhabi.
Isso aconteceu largamente porque Biden decidiu antecipar a saída das tropas, que ocorreria numa data ainda mais próxima, o 31 de agosto. Com isso, seus cerca de 3.500 soldados, mais outros 7.000 aliados, foram embora rapidamente: na semana anterior à queda da capital, 95% das forças haviam saído.
Isso levou à correria da evacuação, que mobilizou 6.000 soldados que em sua maioria nunca tinham colocado o pé no país -caso dos 13 que morreram no atentado de quinta.
A decisão de antecipar a saída veio em meio às ameaças do Talibã de que não permitira a extensão da operação, como queriam países como Reino Unido e Alemanha, mas principalmente com a emergência do EI-K (Estado Islâmico Khorasan), braço afegão do notório grupo terrorista.
Adversário do Talibã, o grupo foi responsável pelo atentado de quinta e por atirar foguetes que foram interceptados pelos EUA contra o aeroporto nesta mesma segunda. A tensão estava crescente.
No domingo, os EUA mataram ao menos sete pessoas ao atingir com um drone um carro-bomba que estava sendo levado para o aeroporto. Nesta segunda, o porta-voz do Pentágono, John Kirby, disse que ameaça de ataques segue “muito ativa”.
Assim como no Vietnã há quase meio século, a retirada americana foi marcada por humilhação internacional. Há, obviamente, diferenças, mas o governo de Joe Biden agora terá de fazer um longo trabalho de redução de danos políticos por sua decisão.
Mas, como disse nesta segunda (30) o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, é só o começo de uma grande crise humanitária. O órgão estima que até o fim do ano 500 mil dos 37 milhões de afegãos terão deixado o país, que já tem 2,2 milhões de refugiados em campos no Paquistão e no Irã.
Além da renovada ameaça terrorista do EI-K, que assim como o seu rival Talibã já havia atacado Cabul antes, um foco de preocupação é obviamente o próprio grupo que se consolida no poder de novo.
Os talibãs têm negado que irão repetir o regime obscurantista e violento de sua primeira encarnação, de 1996 a 2001, mas a realidade se mostra bem diferente.
“Meus tios são policiais e, duas semanas atrás, fugiram para o Paquistão. O Talibã veio na nossa casa e perguntou sobre eles. Dissemos que não sabíamos e fomos torturados. Depois disso, fugimos para nossa aldeia, mas se eles nos acharem vamos morrer”, escreveu um afegão a um grupo de ativistas brasileiros que tenta ajudar refugiados.
Outro, que se comunica por mensagens de áudio, chorou e pediu: “Por favor, não se esqueçam de nós”. Os ativistas querem apoio de senadores brasileiros para a concessão de vistos a refugiados.
Um outro afegão que também está escondido, o jornalista Ahmed Ali, disse no fim de semana que buscava uma forma de sair do país por terra.
Ele, que trabalhou com ocidentais, contou que parentes em Cabul foram interrogados, já que o Talibã está com acesso a identidades, dados pessoais e biométricos de todos seus alvos, a partir da tomada do Ministério do Interior.
Enquanto o drama se desenrola, os EUA seguiram em uma tensa coordenação com os talibãs, avaliada pela Casa Branca como um mal menor ante o risco de ver toda a operação de retirada colapsar.
A correria foi tanta que ainda não há uma estimativa acerca do arsenal deixado para trás, isso sem contar as relativamente bem equipadas Forças Armadas afegãs, que agora estão sob controle talibã -o grupo extremista tem inclusive uma Aeronáutica, que ficou com alguns dos caças brasileiros Super Tucano cujos pilotos não conseguiram escapar.
Outros países operam em velocidades diferentes. A China, como a frequente presença de porta-vozes talibãs em suas redes estatais mostra, quer o regime o mais estável possível para garantir a segurança de sua fronteira oeste.
Ao longo dos anos, os talibãs fomentaram grupos terroristas islâmicos na província de Xinjiang, o território de maioria muçulmana que é oprimido com mão de ferro por Pequim -os EUA acusam a ditadura comunista de genocídio por lá, o que naturalmente é visto pelos chineses como propaganda política.
Antes da ofensiva final, a rival dos EUA na Guerra Fria 2.0 angariou apoio ao Talibã em troca do fim desses vínculos.
Já a Rússia tem mantido uma distância regulamentar, mas com movimentos para tornar-se um ator central na política da região. Seu enviado para assuntos afegãos, Zamir Kabulov, afirmou ao canal Rússia-24 nesta segunda que a embaixada em Cabul está “estabelecendo laços” com os novos donos do governo.
Além disso, o russo criticou a decisão americana de congelar a maior parte das reservas internacionais do Afeganistão, que totalizam US$ 9,4 bilhões. Do ponto de vista militar, buscando manter seu flanco na Ásia Central também sob controle, o Kremlin mantém agora uma rotina de exercícios permanentes com seus aliados com fronteira com o Afeganistão, como Tadjiquistão e Quirguistão.