O Brasil tem aumentado a vigilância para novas variantes do coronavírus, mas a estrutura ainda está longe da ideal e sofre com falta de financiamento, recursos humanos e dificuldade de obter insumos.
Para especialistas, o fato de ter havido identificação da variante que circula no Amazonas, conhecida como P.1., em vários outros países antes de estados brasileiros evidencia essas dificuldades.
A variante foi identificada pela primeira vez em amostras de turistas do estado que visitavam o Japão, e só depois confirmada no Brasil.
Atualmente, a chamada vigilância genômica, modelo que permite a identificação de novas linhagens e variantes do vírus por meio de sequenciamento genético, é feita principalmente por uma rede vinculada ao Ministério da Saúde e por outra ligada à Ciência e Tecnologia, além de projetos em universidades e em alguns laboratórios privados.
O número de amostras sequenciadas no Brasil, porém, ainda é baixo em comparação a outros países.
Aqui, cerca de 0,03% dos casos da Covid tiveram amostras enviadas para sequenciamento, segundo levantamento a partir de dados do Gisaid, plataforma que reúne dados de genomas do coronavírus. Em outros países, como o Reino Unido, esse índice chega a 5%. Na Dinamarca, é de 1,9% e na Irlanda, de 1,4%.
Atualmente, a análise desses dados na rotina na Saúde é concentrada em três laboratórios, que recebem amostras de todos os estados: Fiocruz, Adolfo Lutz, e Instituto Evandro Chagas.
Para essa vigilância, não há necessidade ou possibilidade de sequenciar todas as amostras coletadas em testes -daí a seleção de apenas algumas delas a partir de critérios específicos, separando aquelas mais importantes e que permitem esse trabalho.
Pesquisadores ouvidos pela Folha de S.Paulo, porém, apontam que o rastreio poderia ser maior, sobretudo em casos de surtos que exigem uma verificação rápida e número maior de análises. Segundo o grupo, a detecção de novas variantes é normal e esperada, e a maioria delas não deve preocupar.
O trabalho, porém, é importante para detectar mudanças na circulação do vírus e alertas para algumas potencialmente mais transmissíveis -caso da variante do Amazonas, por exemplo.
Entre os entraves para aumentar a análise, estão a falta de equipes e dificuldade em importar insumos, além do alto custo do processo.
“Temos equipamentos, mas falta pessoal e reagentes para intensificar a vigilância genômica”, afirma José Eduardo Levi, pesquisador do Laboratório de Virologia do Instituto de Medicina Tropical, da Faculdade de Medicina da USP.
Para ele, o ideal é que haja uma organização para sequenciamento sistemático de casos com representação estatística.
“A metodologia é cara, os insumos são caros, e essa é uma barreira para que possa ser difundida de forma mais ampla”, afirma Mirleide Cordeiro, coordenadora do laboratório de vírus respiratórios do Instituto Evandro Chagas.
Ela avalia, contudo, que o problema não é exclusivo no Brasil. “No Brasil, temos pessoal qualificado, o que nos falta é uma estrutura de parque tecnológico para que façamos isso de forma mais efetiva. É necessário mais investimento em ciência e saúde pública”.
Os problemas se refletem nos dados disponíveis. Na prática, o Brasil ainda não sabe precisar a extensão da circulação da nova variante identificada em Manaus, por exemplo. Questionado, o Ministério da Saúde diz que análises são conduzidas para avaliar a circulação.
Pesquisadores apontam que 90% dos casos do Amazonas já estão associados a ela. Dizem ainda que a variante já se espalhou para outros estados além de Amazonas, Pará e São Paulo, onde já foi identificada.
A baixa testagem associada à demora maior para o sequenciamento em algumas regiões agravam o problema. No Maranhão, por exemplo, são em média 21 dias desde a coleta do material até o resultado. Em outros, chega a 25 dias ou uma semana -tempo que geralmente leva para a análise, que é demorada.
“Dentre os critérios para sequenciamento estão as amostras positivas com maiores cargas virais, o monitoramento de paciente provenientes de áreas que possuem circulação de novas variantes, como Reino Unido e África do Sul, através da equipe do Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde”, disse em nota a secretaria de Saúde do governo do Maranhão.
No Mato Grosso, só a remessa das amostras demora de 5 a 10 dias, já que é necessário pedir voo para transporte, segundo a secretaria de saúde.
Fátima Marinho, médica epidemiologista e especialista sênior da Vital Strategies, aponta que o baixo índice de sequenciamento do vírus tem impacto no controle da pandemia.
“Quando surge uma cepa mais eficiente, é importante identificar para controlar e reduzir impacto, trabalhar para a variante não se tornar predominante. E ficar atento a outras variantes. Muitas delas são insignificantes, mas outras são melhores, mais infectantes e letais”.
Em geral, especialistas consideram a possibilidade de haver novas variantes comum e que a maioria não deve gerar preocupação. O monitoramento, porém, é necessário.
Além da variante do Amazonas, outras duas têm chamado atenção devido a uma possível maior transmissibilidade: é o caso de uma identificada no Reino Unido (VOC 202012/01), outra na África do Sul (501Y.V2, derivada linhagem B.1.351 do vírus), e a P.1., do Amazonas (que derivou da linhagem B.1.1.28). Essa última é a que gera maior alerta por aqui.
“Tendo em vista o aumento rápido e expressivo do número de casos e óbitos pela doença em Manaus, a partir de dezembro de 2020, há uma hipótese de que isso esteja relacionado com uma maior infectividade dessa variante”, diz o Ministério da Saúde em nota técnica divulgada nesta semana, ressaltando que trata-se de hipótese, não fato.
Questionado sobre os gargalos da vigilância genômica, o ministério diz que está iniciando um projeto-piloto para análise, em quatro meses, de até 1.200 amostras de diferentes estados. O objetivo é verificar a circulação da nova variante do Amazonas e identificar outras possíveis.
A estratégia deve ser conduzida em quatro laboratórios -o Adolfo Lutz, em São Paulo, o Instituto Evandro Chagas, no Pará, e os laboratórios centrais de saúde pública da Bahia e de Minas Gerais- que podem chegar a dez nos próximos meses. A pasta não informou a previsão de recursos.
Segundo Cordeiro, do IEC, as primeiras amostras começaram a chegar nesta semana. A previsão é que o trabalho se some ao monitoramento de rotina na rede, feito por meio de envio de um volume específico de amostras de cada estado -no IEC, a média é de 100 a 200 sequenciamentos por mês.
O número é semelhante ao total analisado como rotina na Fiocruz, também referência na rede.
“Quanto menor a circulação, menos chance de ter uma nova variante. Os riscos no caso de novas cepas é encontrar alguma que a vacina pode não oferecer imunidade, o que ainda não foi identificado”, afirma Fernando Motta, pesquisador do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz e da Fiocruz.
Já no Adolfo Lutz, são 40 por semana, segundo Adriano Abbud, diretor de respostas rápidas do instituto. Para ele, a rede de vigilância é estruturada, e a dificuldade em aumentar o sequenciamento está no custo.
Abbud afirma que não se pode atribuir um aumento de casos penas a novas variante, mas recomenda o reforço de medidas de distanciamento. “Sequenciar é necessário para conhecer a doença, mas para pará-la, precisamos de distanciamento social, uso de máscara e vacinação”, diz. “É assim que temos que proceder, não importa a variante.”
Além dos laboratórios vinculados ao Ministério da Saúde, a vigilância genômica tem apoio de outros centros, como os da Rede Coronaômica, ligada ao MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), e voltada ao acompanhamento de pesquisas em universidades.
O grupo foi formado durante a pandemia, mas enfrentou atrasos para iniciar as atividades.
Fernando Spilki, o coordenador, diz ver avanços nos últimos meses: “A Inglaterra estava fazendo mais de 7.000 sequenciamentos num dia e estava sequenciando de 3% a 5% das amostras, mas não foi isso que ela fez o tempo todo. Se olharmos um gráfico, também teve um momento em que não estava sequenciando tanto”.