“Obrigado a todos que confiam no meu canto!”
Essa declaração foi uma das muitas que Maria Bethânia deu ao público virtual nos intervalos entre canções e poemas que apresentou em sua primeira live, transmitida pela Globoplay na noite de sábado (13). Nessa frase, uma constatação: como duvidar de uma cantora que, aos 74 anos, segue sendo uma força da natureza?
Quem acompanhou as turnês recentes de Bethânia ficou acostumado a performances que flertam com a perfeição, quase sempre alcançando esse objetivo. São shows meticulosos, exaustivamente ensaiados, nos quais a cantora exibe um domínio completo sobre tudo a seu redor.
Da primeira à última nota, Bethânia transportou esse rigor para uma live que poderia ser talvez uma faceta mais descontraída de seu contato com o público, mesmo virtual. Mas não. Ela entrega sempre o modo impecável de ser e de cantar, o que é ótimo!
Em tempos normais, seria até uma prévia da próxima turnê, com o material de “Noturno”, disco de inéditas que lança daqui a algumas semanas. Ofereceu uma pitada de canções novas, encaixadas dentro de uma seleção de sucessos antigos e algumas surpresas.
E a volta ao passado foi radical. Bethânia declamou um texto que integrou o musical “Opinião”, um dos mais contestadores shows do período inicial da ditadura no país. Há exatos 56 anos, em 13 de fevereiro de 1965, ela substituiu Nara Leão no elenco do espetáculo, a convite da própria. Foi sua estreia nos palcos cariocas.
E sua relação com 13 de fevereiro não parou por aí. Em 2016, nessa mesma data, ela desfilou na Mangueira, campeã do Carnaval naquele ano com um enredo sobre sua carreira.
Mais forte do que hits conhecidos ou as novas (e boas) músicas extraídas de “Noturno” foi um bloco “de protesto” que surpreendeu em dois momentos seguidos.
Primeiro, a versão dela para “2 de Junho”, música que Adriana Calcanhotto escreveu e lançou em single no ano passado. O vozeirão de Bethânia dá mais impacto ainda ao contundente lamento inconformado sobre a morte do menino pernambucano de cinco anos, Miguel. Ele caiu do nono andar de um prédio quando deveria estar sob cuidados da patroa de sua mãe, um caso de comoção nacional.
Em seguida, talvez na apresentação mais poderosa da noite, Bethânia emendou “Cálice”, música que é um dos principais hinos contra o regime militar, gravada em dueto por Chico Buarque e Milton Nascimento em 1978. Foi composta em 1973 por Chico e Gilberto Gil.
Em um de vários deslizes do gerador de caracteres da Globoplay, que mostrava em legendas nomes e autores da músicas, foi creditada apenas a Chico Buarque.
Do disco prestes a sair, Bethânia mostrou sua afinada colaboração com o violonista e compositor paulista Paulo Dáflin, cantando dele “Lapa Santa” e “De Onde Eu Vim”. Dáflin integrou o quarteto que acompanhou a cantora na live de quase 70 minutos. Ele tocou violão e guitarra, ao lado do violonista João Camarero, do percussionista Marcelo Costa e do baixista Jorge Helder, um dos produtores de “Noturno”.
Mais do que se preocupar com hits, o roteiro do show reforçou a aposta de Bethânia em compositores que se acostumou a gravar nessas décadas de carreira. Chico Buarque também esteve presente em “Olhos nos Olhos” e “Sonho Impossível”, esta parceria com o cineasta Ruy Guerra. A Globoplay deu crédito de autoria à dupla, sem explicar que é uma versão de canção de Mitch Leigh e Joe Darion do musical americano “Man of La Mancha”.
Chico Cesar, autor que cada vez mais Bethânia inclui em seu repertório, teve três músicas na noite. Entre elas, uma apresentação emocionante de “Luminosidade”, que ela dedicou ao irmão Caetano. Aproveitou para dizer que gostaria de ouvir o afilhado Zeca, filho de Caetano, cantando essa música.
O baiano Roque Ferreira, outro compositor querido, teve também três canções no setlist. Dele, “Lágrima” foi um grande momento. E emocionante foi o resgate de Gonzaguinha, um nome importantíssimo na bagagem de Bethânia. Ela abriu e fechou o show com sucessos estrondosos que conseguiu com canções dele.
Iniciou a noite com uma versão capela de “Explode Coração” e fechou com “O que É, o que É”, que num show com plateia teria levado o público a subir nas cadeiras para dançar e berrar o refrão “É bonita, é bonita e é bonita”.
Numa comparação quase inevitável, Bethânia fez uma live impecável, bem mais poderosa do que a recente do mano Caetano. Mas os dois exibiram reflexos do que são seus shows ditos “normais”.
Caetano falou pelos cotovelos, sem nenhum texto ensaiado, foi repetitivo até. E chegou a ser titubeante em alguns números, como tem sido em suas turnês recentes e sempre emocionantes.
Ela mostrou na live a mesma Bethânia dos shows, aquela em que seu público pode sempre confiar. Canções que tocam a memória afetiva das pessoas, intercaladas quase sem pausas com belos poemas, solidamente decorados, e o vozeirão que não dá o menor indício que um dia se enfraquecerá. Uma grande noite.