O Ministério da Saúde defendeu o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para tratar pacientes de Covid-19 que têm deficiência de G6PD (glicose-6-fosfato, defeito enzimático ligado ao cromossomo X). Os medicamentos, sem eficácia contra a Covid comprovada, são contraindicados na bula para estas pessoas.
O parecer está em nota técnica emitida pelo órgão, em abril do ano passado, e publicada em seu site. É assinado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, que avaliou a segurança destes medicamentos em pacientes de G6PD infectados pelo vírus.
A análise foi feita depois de a neurocientista Silmara Paula Gouvea de Marco, que tem a deficiência, assim como sua família, enviar um e-mail para a chefia de gabinete do ministro da Saúde, na época ocupado por Luiz Henrique Mandetta, manifestando preocupação com o tema.
Na mensagem, intitulada “Problema Sério com Cloroquina”, a pesquisadora alertava para a possibilidade de “efeito colateral de alto nível” destes medicamentos em pacientes com deficiência de G6PD no tratamento da Covid.
Por isso, sugeria que, antes de ministrar o remédio, laboratórios rastreassem a doença, “pois tais pacientes podem vir a óbito caso façam uso de tal medicamento”. Ela também conduziu um estudo sobre a doença no curso de biomedicina da Universidade José do Rosário Vellano, em Minas Gerais.
O Ministério da Saúde justificou, em sua nota técnica, que ambos medicamentos foram recomendados pela pasta como possibilidade terapêutica em pacientes com diagnóstico confirmado da Covid, hospitalizados e com a forma grave da doença, em caráter off label, ou seja, sem indicação prévia em bula.
Depois, admite que a bula da cloroquina informa sua contraindicação para pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase e a bula da hidroxicloroquina adverte que seu uso nesses pacientes deve ser feito com cautela.
Porém, afirma que uma revisão de estudos conduzida por pesquisadores brasileiros, que buscou identificar as complicações clínicas associadas à deficiência de G6PD nos países da América Latina e Caribe, não identificou casos de anemia hemolítica aguda provocada por cloroquina em pacientes com a deficiência.
“A cloroquina apresenta contraindicação em bula para pacientes com deficiência de G6PD e a bula da hidroxicloroquina recomenda uso com cautela nesses pacientes. Apesar disso, as evidências atualmente disponíveis não apontam para risco aumentado da utilização desses medicamentos em pacientes com deficiência de G6PD”, diz.
“Dessa forma, não se justifica o rastreamento de deficiência de G6PD em todos os pacientes elegíveis para tratamento com cloroquina ou hidroxicloroquina devido à infecção por coronavírus”, ressalta.
A deficiência da G6PD é genética e afeta quase meio bilhão de pessoas no mundo. Ela se manifesta principalmente nas hemácias, já que a enzima é necessária para a viabilidade dos glóbulos vermelhos.
Ela pode se agravar quando o portador ingerir determinados alimentos ou tipos medicamentos não indicados, provocando anemia grave, rompimento das hemácias, falta de ar e até morte, dependendo do caso.
A bula do medicamento Quinacris, por exemplo, fabricado com cloroquina pelo laboratório Cristália, fala da doença na parte de “precauções e advertências”. Ela diz que pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato devem ser observados quanto à anemia hemolítica durante o tratamento com cloroquina.
A FDA (agência de regulação de medicamentos nos EUA) também recomenda a avaliação e monitoramento do uso destas substâncias nestes casos. “Esteja ciente de que a hidroxicloroquina ou a cloroquina podem causar hemólise em pacientes com deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase (G6PD)”, informa.
A hemólise é o processo de destruição de glóbulos vermelhos do sangue, o que libera a hemoglobina, pigmento responsável pelo transporte de oxigênio às células.
Outro estudo do Hemorio, hemocentro da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, diz que a cloroquina deve ser usada com cuidado por estes pacientes e, a hidroxicloroquina, evitada.
“Minha intenção era abrir um chamado, que foi negado, para que o Ministério da Saúde tivesse cautela ao indicar esses medicamentos para estes pacientes. É um ponto válido já que, até hoje, a eficácia deles também ainda não foi comprovada”, disse a pesquisadora.
No dia 31 de março do ano passado, o Ministério da Saúde também publicou uma nota informativa sobre o uso da cloroquina como terapia adjuvante no tratamento de formas graves da Covid. Uma das justificativas da pasta era a inexistência de terapias medicamentosas específicas para a doença, no início da pandemia.
A defesa do uso do remédio sem comprovação de eficácia para tratamento da Covid é uma das bandeiras do presidente Jair Bolsonaro. Esses remédios são usados há décadas para outros objetivos, mas foram descartados pela comunidade científica e médica para o tratamento da Covid por não demonstrarem capacidade de barrar o novo coronavírus, prevenir a doença ou tratá-la.
Em depoimento à CPI da Covid do Senado, Mandetta disse que a única coisa em relação à cloroquina que o Ministério da Saúde fez em sua gestão, após consulta ao Conselho Federal de Medicina, era para o uso compassivo do medicamento.
“O uso compassivo é uma utilização que se faz quando não há outro recurso terapêutico para os pacientes graves em ambiente hospitalar, mesmo porque a cloroquina é uma droga que, para uso indiscriminado e sem monitoramento, tem margem de segurança estreita. Ela também não é um medicamento ‘se bem não faz, mal também não faz’, tem uma série de reações adversas e cuidados que tem que ser feitos”, disse.
Já o ex-ministro Nelson Teich, que sucedeu Mandetta, disse ter deixado o governo por divergências com o presidente Jair Bolsonaro sobre o uso da cloroquina.
Na mesma semana, Bolsonaro chamou de canalha quem é contra o chamado tratamento precoce –baseado no uso da substância sem eficácia para a Covid– sem apresentar alternativa”.
Em resposta à reportagem, o Ministério da Saúde afirmou apenas que “orienta e recomenda que, aos primeiros sinais da covid-19, os pacientes procurem uma Unidade Básica da Saúde (posto médico) para atendimento médico”.
“A medida é fundamental para evitar casos graves da doença. Em relação ao uso de medicamentos, cabe ao profissional de saúde receitar o tratamento adequado a cada paciente”, disse.