Pelé detestava velórios. Todas as vezes que era perguntado por seu fiel escudeiro e amigo Pepito Fornos se iria se despedir de algum amigo ou personalidade morta, Pelé respondia: não, não iria. “Só vou ao meu velório porque não tem jeito”, dizia.
Não há estimativa precisa, mas milhares de pessoas devem passar pela Vila Belmiro entre esta segunda (2) e terça (3) para dar adeus ao Rei do Futebol. Ele morreu na última quinta-feira (29), por insuficiência renal, insuficiência cardíaca, broncopneumonia e adenocarcinona de cólon.
Pelé odiava a ideia de ver pessoas mortas, segundo pessoas ouvidas pela Folha, porque era o oposto da imagem que queria projetar: a de invencibilidade.
Uma das histórias que mais irritava Coutinho na relação de amor e ódio com o camisa 10 não era de quando os dois dividiam o ataque e o centroavante usava uma pulseira branca. Às vezes ele dava razão à história de que fazia aquilo para se diferenciar de Pelé. Em outras ocasiões, negava.
Da mesma forma que poderia usar a expressão “rei” para se referir ao antigo colega como ironia. Também saía de vez em quando como reverência. Coutinho se irritava mesmo quando, com a cabeça grisalha, encontrava-se com Pelé e o ouvia dizer que não tinha nenhum fio de cabelo branco.
“Só a gente fica velho e ele, não?”, resmungava. Coutinho era três anos mais novo que o parceiro de ataque.
Não era a imagem de velhice, de fragilidade que Pelé desejava mostrar. O Rei do Futebol não gostava de contar, mas adorava quando outra pessoa o fazia, na sua presença, sobre a tarde em que saiu pelas ruas de Nova York para caminhar ao lado do ator norte-americano Robert Redford. Até chegarem ao restaurante marcado, Redford deu cinco autógrafos. Pelé, sete.
Era este o astro que conseguia contratos de patrocínio que o faziam rodar o mundo. Aquilo não aconteceria com um ídolo de cabelos brancos.
De acordo com amigos, as sequências de cirurgias no quadril, iniciadas em 2012 para a colocação de uma prótese, e o problema no joelho direito e as sessões de fisioterapia (que ele achava não darem resultado) fizeram com que tivesse consciência da própria decadência física. Mas nada o abalou tanto quanto a morte do irmão Zoca, vítima de câncer de próstata, em 2020.
“Eu só tenho medo de não poder cumprir meus compromissos. É isso o que não quero que aconteça. Espero me manter ativo”, disse após perder a viagem para o Mundial da Rússia, em 2018, por recomendações médicas.
Foi a época em que começaram a circular os boatos de que ele “não estava bem”. Todos sempre negados. Por seus assessores, com irritação. Pelo próprio Pelé, com bom humor.
Ele fez de tudo para manter sua agenda ativa, apesar das restrições. Contratado para evento de lançamento do Campeonato Carioca em 2018, viajou de carro de São Paulo ao Rio de Janeiro porque o assento do automóvel lhe deixava em uma posição mais confortável do que o do avião da ponte aérea. Confessou que a impossibilidade de atender aos compromissos comerciais já acertados o irritava. Era uma percepção da própria mortalidade.
Mais de uma vez seus filhos Kely e Edinho tiveram de conversar com ele sobre o empenho no trabalho de recuperação. Que as idas ao hospital eram imprescindíveis, e que isso também valia para as detestadas sessões de fisioterapia.
“A situação se inverteu um pouco e tenho de fazer um pouco o papel de pai dele”, disse Edinho, em tom de divertimento, em 2020.
As mortes de antigos companheiros de Santos, como Zito, Dorval e Coutinho, trouxeram a Pelé de novo a percepção que não queria, a de que tudo não era mais como antes. Ele evitava falar “morte”. Comentou que só estava ficando ele.
Não é verdade. Do ataque lendário alvinegro, por exemplo, Pepe, 87, e Mengálvio, 83, estão vivos. Perguntado pela Folha, em 2018, se tinha medo da morte, Pelé preferiu usar outro termo. “Tenho receio, né? De vez em quando você fica meio preocupado. Senão ninguém tomava remédio.”