O fogo na estátua de 10 metros do bandeirante Manuel de Borba Gato reacendeu o debate sobre a pertinência de monumentos que homenageiam pessoas ligadas à escravidão, à ditadura e a outros períodos sensíveis no passado do Brasil.
Era o objetivo. “O ato foi para abrir um debate. Em nenhum momento foi feito para machucar alguém ou querer causar pânico. Que as pessoas agora decidam se querem ter uma estátua de 13 metros de altura [com o pedestal] que homenageia um genocida e um abusador de mulheres”, disse Paulo Roberto da Silva Lima, o entregador de aplicativos e ativista conhecido como Galo, ao se apresentar voluntariamente à polícia.
Para diminuir a presença desses monumentos na vida das cidades ou simplesmente fazê-los sumir da vista, projetos de lei defendem substituí-los, retirá-los ou contextualizá-los. Há proposições nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e na Câmara dos Deputados.
Cada projeto tem sua particularidade. Eles se diferenciam pela forma da participação popular, pelos destinos de cada símbolo e pelas propostas de ações reparatórias, como estudo da cultura negra e indígena. Têm como objetivo comum, porém, rever homenagens a pessoas que feriram populações vulneráveis.
O debate é antigo. Em 2001, então vereador da cidade de São Paulo Nabil Bonduki propôs um projeto de lei para retirar as referências aos bandeirantes esculpidas no mármore da Câmara Municipal. A sugestão terminou arquivada.
Vinte anos depois, em 2021, a vereadora Luana Alves (PSOL) apresentou projeto de lei que prevê a retirada, substituição, sinalização de símbolos que façam homenagens a escravocratas, nazistas ou eugenistas, além de determinar o ensino da cultura afrobrasileira e indígena nas escolas. Embora tenha sido aprovado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), tem pouca perspectiva de passar em plenário.
A vereadora acredita que muitos grupos ainda se beneficiam das estruturas de poder criadas durante a atuação das pessoas retratadas nos monumentos, daí a dificuldade de debater pautas como essa no país.
“Aqui encontramos muita dificuldade. O projeto que eu apresento não traz novidades em relação ao que outras cidades fizeram. Mas falar sobre retirar estátua é questionar a estrutura de poder atual no Brasil”, afirma.
Após o incêndio na estátua de Borba Gato, diversas ações estão sendo direcionadas para a retirada do monumento, que é alvo de críticas desde a sua inauguração.
O mandato coletivo Bancada Feminista do PSOL protocolou projeto de decreto legislativo que propõe a convocação de consulta pública sobre o destino da estátua.
As iniciativas, no entanto, encontram resistência. Aqueles contrários à retirada dos monumentos argumentam que isso pode gerar um apagão histórico. Que os símbolos contam a história do local e que sua presença não significa a defesa ou a legitimação das ações que as pessoas retratadas fizeram no passado.
A historiadora Ana Lúcia Araújo, professora do Departamento de História da Universidade Howard, afirma que a permanência desses símbolos não se relaciona com a preservação da história, mas com a conservação de uma memória pública que foi utilizada por grupos para impor agendas políticas e a sua própria visão do espaço público.
A retirada, substituição ou mesmo derrubada de qualquer símbolo, diz a historiadora, pode ser utilizada para apagar a memória que foi construída e que anos depois já não corresponde à sociedade em que está inserida.
“Esses monumentos foram erguidos para prestar homenagem a pessoas que eram algozes. Então, nesse sentido, cabe a retirada desses monumentos. Essa história não está apagada, ela está no arquivo. Existem historiadores escrevendo sobre isso, jornalistas que escrevem sobre isso.”
No caso do Brasil, a historiadora avalia que diversas saídas podem ser consideradas, como a retirada ou o armazenamento dos monumentos, exposição em museus ou parques, ou mesmo que o espaço que ocupavam fique vazio.
“Não existe uma solução única. Mas é preciso avaliar porque, por exemplo, a situação dos museus no Brasil é um caos, um desastre, uma tragédia. E tem muitos museus que não querem essas obras”, diz.
Nos EUA como no Brasil, o debate não é recente, mas se intensificou após os protestos contra o racismo do ano passado, que tiveram início após a morte de George Floyd.
Durante as manifestações, participantes derrubaram estátuas e monumentos de personagens ligadas à escravidão.
A deputada estadual Érica Malunguinho (PSOL) apresentou projeto de lei que propõe a retirada de monumentos públicos das ruas de São Paulo para que sejam colocados em museus. Sugere também que prédios, rodovias, ruas, estradas e todos os outros símbolos que tenham o nome ou referência a escravocratas sejam renomeados a partir de uma comissão permanente.
“Enquanto essas imagens, arquiteturas e espaços urbanos ainda forem inóspitos e violentos de forma simbólica e objetiva para algumas pessoas, isso deve gerar indignação”, diz. “É uma dor coletiva que gerou um projeto de desigualdade. Ter uma estátua do Borba Gato é como se a gente endossasse a violência das periferias, as pessoas em situação de rua, o encarceramento. É como se a gente endossasse a desigualdade.”
Na Câmara dos Deputados, as deputadas federais Taliria Petrone (PSOL) e Áurea Carolina (PSOL) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB) apresentaram um projeto para proibir homenagens a proprietários e traficantes de escravos e pensadores que defenderam a escravidão. Os deputados defendem que sejam levados a museus. Assim como outras proposições, o projeto aguarda votação, mas tem pouca chance de aprovação.