“O que mais me afetou nisso tudo foi a questão da minha paz. Eu não conseguia ter tranquilidade, eu não dormia à noite, não podia mais sair sozinha. Pedi demissão do meu trabalho. Até em casa eu já não conseguia mais ficar sozinha. Eu nunca o vi. Nem tive contato pessoalmente, mas já cheguei a imaginar que uma vez o encontrei, mas era mais a questão do meu medo mesmo. Qualquer pessoa que se aproximasse de mim eu achava que poderia ser ele”. O relato é de Fernanda*, jovem de 19 anos, moradora de Fortaleza e vítima de stalking, em português, perseguição, conduta criminalizada no Brasil, pela lei nº 14.132/2021. A lei entrou em vigor no último dia 31 de março deste ano. O caso da jovem teve desfecho no início deste mês de julho, quando um homem, de 30 anos, foi preso em flagrante suspeito de perseguir a vítima por cerca de seis meses.
Para fugir do “stalker”, nomenclatura em inglês para definir alguém que importuna de forma insistente e obsessiva uma outra pessoa, Fernanda* viu sua vida mudar completamente. Foi preciso adotar uma nova rotina, sair do emprego, até criar coragem e denunciar o caso no 5º Distrito Policial, em Fortaleza, que passou a investigar e conseguiu prender o suspeito em flagrante, em um shopping na Capital. O homem confessou, na delegacia, que se interessou pela vítima, após observá-la em um ônibus. Devido à farda que a jovem usava, foi possível que ele identificasse seu local de trabalho e tentasse o primeiro contato.
Em fevereiro deste ano, ela viu sua vida começar a mudar. O suspeito pegava o mesmo ônibus que a vítima e passou a observá-la. Ele conseguiu o número do telefone de Fernanda* em seu local de trabalho. A desculpa era um contato profissional. A primeira abordagem iniciou com uma possível oferta de trabalho, mas logo evoluiu para cantadas e comentários de cunho sexual. Foram meses de perseguição, segundo a vítima. Dezenas de ligações ao longo do dia, fotos da recepção do trabalho dela e do seu deslocamento. O suspeito chegou a descrever a roupa e o local que a vítima estava quando a viu sentada em um ônibus, durante o trajeto para o trabalho. “Era desesperador. Ele falava da minha roupa, do meu corpo, do meu sorriso. Eu não confiava em ninguém. Passei a sentir muito medo”, relatou a vítima.
Conforme o delegado Valdir Passos, titular do 5º Distrito Policial, “com a sanção da lei, foi possível ter um instrumento jurídico correspondente ao crime de perseguição, conduta essa que causa tanto transtornos à vida, à rotina, ao bem-estar e à tranquilidade de quem é perseguido. Desta forma, é primordial que as pessoas que se sintam vítimas, busquem a Polícia e façam a denúncia. O crime de stalking pode ser o início de uma série de crimes que podem ser mais gravosos, como o estupro e o homicídio”, detalhou o delegado.
Já o escrivão da PC-CE, José Raulino, que atuou no atendimento de Fernanda*, pontuou que as provas elencadas pela vítima não deixaram dúvida que ela estava sendo vítima de um stalker. “Ela estava apavorada. Não sabia mais como proceder, pois mesmo bloqueando o contato que tinha com o homem, ele conseguia novos números, além de criar perfis falsos em redes sociais, e voltava a importuná-la. Ela nos trouxe diversas mensagens que recebia ininterruptamente do suspeito”, explicou o escrivão.
O caso é um dos 20 registros de ocorrência no Ceará, desde a inclusão do artigo 147-A no Código Penal. O ato de “perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade” passou a ser crime com pena prevista de reclusão de seis meses a dois anos, além de multa. Caso o crime seja cometido contra crianças, adolescentes, idosos ou mulheres por razões da condição de sexo feminino, a pena pode ser aumentada pela metade. O mesmo vale se o crime for praticado por duas ou mais pessoas ou com o emprego de arma.
Em quase quatro meses desde a sanção da lei, no Ceará, a exemplo de Fernanda*, outras 18 mulheres e um homem, com idades entre 18 e 64 anos, buscaram a Polícia Civil do Estado do Ceará (PC-CE) e registraram a ocorrência.
O delegado Valdir Passos ressalta a importância do registro da ocorrência e a necessidade das vítimas reunirem o máximo de provas possíveis. “Geralmente as pessoas que praticam esse tipo de crime tentam ficar encobertas por perfis falsos, por telefone falsos. Então, assim que a pessoa identificar que pode estar sendo vítima de um perseguidor, ela deve comunicar às autoridades policiais e não bloquear a pessoa e nem apagar as mensagens recebidas. Ela tem que trazer o máximo de provas para que possamos dar início às investigações”, finalizou o delegado.
Saiba como identificar
O crime de perseguição pode ter inúmeros desdobramentos, principalmente, em situações em que o suspeito projeta controle sobre a vida da vítima, refletindo em mecanismos de controle psicológico ou concreto da relação.
A conduta é mais comum por meio do “cyberstalking”, quando a perseguição ocorre por meio da Internet, com a criação de perfis “fakes” nas redes sociais ou aplicativos de mensagens, com a insistência em convites, fazer-se presente na vida da vítima sempre de forma inconveniente ou até agressões psicológicas.
O crime é de ação penal pública condicionada à representação da vítima, ou seja, é necessário que haja provocação da pessoa ofendida para que seja iniciada a investigação policial. Caso o suspeito utilize um perfil falso para perseguir a vítima e praticar o delito, o prazo da ação correrá a partir da descoberta da identidade por trás do perfil “fake”.