A área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) vai investigar a qualidade e as características das máscaras compradas pelo Ministério da Saúde e distribuídas aos estados apesar de serem impróprias para uso hospitalar. A história foi revelada pelo jornal Folha de S.Paulo em reportagem publicada na quarta-feira (17).
O tribunal já havia listado uma das empresas fornecedoras das máscaras como destinatária da maior fatia de recursos públicos destravados pelo Ministério da Saúde durante a pandemia, em julho do ano passado. Um relatório de acompanhamento do TCU, de julho, apontou a empresa no topo da lista, com empenhos -autorizações de gastos- de R$ 694,3 milhões, somente para compra das máscaras.
Agora, os auditores vão se debruçar sobre a qualidade do material e as especificações técnicas, para averiguar eventuais irregularidades nos gastos feitos pelo Ministério da Saúde.
O trabalho é conduzido pela Secex (Secretaria de Controle Externo) da Saúde. É esta unidade técnica que vem analisando os gastos do Ministério da Saúde na pandemia, com relatórios periódicos levados a julgamento pelos ministros em plenário. Os acórdãos aprovados estabelecem correções a serem adotadas pela pasta.
Quatro acórdãos já foram aprovados -em maio, julho, outubro e dezembro de 2020.
No curso da elaboração do quinto relatório, os auditores vão buscar evidências de supostas irregularidades na compra das máscaras. O ministério deve ser ouvido. Constatadas as irregularidades, o TCU abrirá um processo a parte para apurar condutas e responsabilidades individuais.
O caso é investigado também pelo MPF (Ministério Público Federal) em Brasília. Um inquérito civil foi instaurado em 3 de fevereiro, após investigação preliminar conduzida pelo MPF no Rio Grande do Norte.
A investigação também havia sido revelada pela Folha de S.Paulo. Segundo o jornal, o Ministério Público Federal havia aberto um inquérito para investigar o contrato de importação de 240 milhões de máscaras de proteção contra a Covid-19 no valor de R$ 691,7 milhões firmado pelo governo Bolsonaro no ano passado.
A Folha de S.Paulo mostrou que um documento do gabinete da presidência da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), concluído em 13 de janeiro, apontou que as máscaras analisadas -chinesas, do tipo KN95- não eram indicadas para uso hospitalar. Mesmo assim, o ministério distribuiu o material e se recusou a substitui-lo diante da recusa de estados em usar os equipamentos.
O fornecedor de parte dessas máscaras é uma empresa cujo representante no Brasil é um executivo que atua no mercado de relógios de luxo suíços -é ele quem assina o contrato com o governo federal.
O mesmo documento afirma que o órgão recebeu diversas reclamações sobre a impropriedade das máscaras, avisou o Ministério da Saúde sobre a necessidade de atender às especificações dos fabricantes e fez um alerta sobre “riscos adicionais” a que estão sujeitos profissionais e pacientes.
Foram duas as situações envolvendo essas máscaras. Uma parte delas teve o uso interditado pela Anvisa a partir de junho de 2020, depois que a autoridade sanitária dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) suspendeu autorizações emergenciais diante da falta de eficiência mínima na filtragem de partículas.
Outra parte foi escanteada pelos estados em razão da advertência “non-medical” presente nas embalagens das máscaras enviadas para as secretarias de Saúde locais. Equipamentos ficaram parados em estoques, sem uso.
O ministério distribuiu ambas pelo menos entre julho e dezembro de 2020. E não só se recusou a recolher os produtos e a substituí-los, como enviou mais máscaras “non-medical” para uso hospitalar.
O contrato para o fornecimento de máscaras KN95 ao governo foi assinado em 8 de abril, num contexto de dificuldade de obtenção do material no mercado externo, com a pandemia ganhando contornos de gravidade no mundo inteiro. Uma legislação especial permitiu a dispensa de licitação para a compra.
A contratada foi uma empresa de Hong Kong, a Global Base Development HK Limited, representada no Brasil pela 356 Distribuidora, Importadora e Exportadora.
A Global é a empresa que aparece no topo de empenhos feitos pelo Ministério da Saúde até julho, no contexto da pandemia, conforme relatório do TCU.
O dono da 356 Distribuidora, Freddy Rabbat, assinou o contrato, que previu 40 milhões de máscaras KN95. Houve ainda mais 200 milhões de máscaras cirúrgicas no mesmo contrato.
Cada KN95 saiu por US$ 1,65 (R$ 9,17, pela cotação do dólar de quinta, 17). O total foi de US$ 66 milhões (R$ 367 milhões).
Rabbat atua em uma empresa de relógios de luxo no Brasil. Ele é presidente da Abrael (Associação Brasileira das Empresas de Luxo).
A 356 Distribuidora tem um capital social de R$ 800 mil, segundo os registros da Receita Federal. A Global Base, representada pela 356, já recebeu R$ 734 milhões do governo federal, principalmente pela venda de máscaras na pandemia. Os dados são do Portal da Transparência.
Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que as máscaras KN95 fornecidas à pasta passaram por análise de qualidade em laboratórios e cumprem os requisitos sanitários exigidos.
É o mesmo argumento que a pasta sustentou em documentos oficiais de agosto e novembro de 2020 e de janeiro de 2021, quando defendeu o uso do material pelos profissionais de saúde.
Porém, nos testes informados pela fornecedora e levados em conta pelo ministério, não estão nem a marca interditada pela Anvisa nem todas as marcas que colocaram a advertência “non-medical” nas embalagens das máscaras. Os dois tipos foram efetivamente distribuídos aos estados.
Segundo o ministério, foram distribuídos 29,7 milhões de máscaras KN95, a todos estados e ao DF, para uso por profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à Covid-19.
Também em nota, assinada pelos advogados Eduardo Diamantino e Fabio Tofic, a 356 Distribuidora afirmou que a compra está em conformidade com a legislação brasileira, tendo observado as especificações estabelecidas em resolução da Anvisa. “A pandemia avançava em todo o mundo e não havia disponibilidade de utensílios para o combate da doença no Brasil.”
Segundo os advogados, há uma “confusão” em razão da “imprecisão” na tradução da expressão “non-medical”, advertência presente nas embalagens das máscaras. “Na China, onde o material é fabricado, o termo se refere a ‘não cirúrgico’. Os equipamentos podem ser utilizados em ambiente hospitalar, por médicos, enfermeiros e pacientes”, cita a nota.
As máscaras vendidas pela Global Base são reconhecidas internacionalmente, cumprem a exigência do edital e obtiveram resultados positivos em testes de laboratório, disseram os advogados. “A Anvisa nunca solicitou informações adicionais a respeito dos produtos ou notificou a empresa ou o fabricante.”