O Brasil pode ter seu primeiro caso de reinfecção pelo novo coronavírus confirmado -um estudo sobre o caso será submetido à revista científica The Lancet Infectious Diseases. Ao mesmo tempo, pesquisadores brasileiros investigam ao menos 95 suspeitas de reinfecção pelo novo coronavírus em quatro estados.
O descarte de exames, no entanto, dificulta o trabalho. Sem as amostras, os cientistas não conseguem sequenciar os genomas dos vírus que podem ter infectado os pacientes para confirmar que se trata de duas infecções distintas, o que é considerado essencial por periódicos científicos internacionais como a Lancet.
A paciente do caso que será submetido à avaliação da revista é uma técnica de enfermagem de 40 anos de Aracaju, segundo o médico Roque de Almeida, doutor em imunologia e chefe do laboratório de biologia molecular do Hospital Universitário de Sergipe.
Ela fez dois exames RT-PCR (considerando o padrão ouro para verificar a infecção aguda pelo coronavírus) com resultado positivo para o Sars-CoV-2 no intervalo de 54 dias, entre maio e julho. Teve tosse seca e falta de ar, mas não precisou ser hospitalizada.
Os exames dela foram preservados e as amostras genéticas, coletadas a partir de secreção de garganta e nariz, foram sequenciadas pelo virologista Gubio Santos.
Os genomas obtidos foram analisados pelos professores de biologia molecular Luís Pacheco e Eric Aguiar, da UFBA (Universidade Federal da Bahia). Aguiar afirma que o vírus da segunda infecção era de linhagem diferente e havia sofrido seis mutações. Detalhes foram enviados à Lancet com exclusividade.
A análise dos genomas dos vírus é fator comum entre os quatro casos de reinfecções confirmados pela Lancet -na Bélgica, na China, no Equador e nos Estados Unidos.
Contudo, dos outros 95 casos de possível reinfecção que são analisados o por pesquisadores brasileiros consultados pela Folha, só 14 tiveram amostras genéticas recuperadas.
Três estão no HC (Hospital das Clínicas) da USP em São Paulo e outras três no HC da USP de Ribeirão Preto. O hospital da capital já sequenciou suas amostras e constatou que os vírus são iguais; a unidade do interior ainda trabalha nas suas.
A Unicamp (Universidade de Campinas) investiga oito suspeitas, todas com amostras. A instituição guardou todos os exames desde o início da pandemia e não considera um caso suspeito sem ter o material.
Um grupo de Fortaleza acompanha 12 pacientes possivelmente reinfectados, mas ainda não obteve as amostras. Em Recife, há outros dois, também sem os exames.
Os pesquisadores afirmam que recuperar as amostras é difícil porque alguns laboratórios as descartam. Isso ocorreu principalmente com exames do início da pandemia, quando não se pensava em reinfecção.
Responsável pela análise dos genomas no caso de Aracaju, Aguiar considera o sequenciamento genético imprescindível para confirmar uma reinfecção. “O genoma é uma assinatura digital do vírus”, diz.
A tarefa esbarra ainda na falta de recursos. Ceará e Sergipe, por exemplo, não têm sequenciadores nos ambulatórios universitários, o que leva os pesquisadores a pedirem ajuda uns aos outros.
“O sequenciamento é feito com reagentes de alto custo, a maioria importados em dólar, e ainda precisa de um sequenciador, que custa mais de R$ 400 mil”, diz Aguiar.
Há pesquisadores, por outro lado, que não consideram o sequenciamento essencial. É o caso do infectologista Fernando Bellissimo, do HC de Ribeirão Preto. Autor do primeiro estudo brasileiro que apontou uma suspeita de reinfecção, antes de o primeiro caso ser confirmado na China, Bellissimo diz que há de se levar em conta evidências clínicas, epidemiológicas e sorológicas.
“É o conjunto de evidências que determina reinfecção. A gente tem dividido os casos entre descartados, possíveis, prováveis e confirmados. Não é porque não tem amostra genética que podemos descartar.”
O Ministério da Saúde diz que trabalha na elaboração de um protocolo para orientar secretarias estaduais e municipais sobre como lidar com reinfecções e descarte de exames. A pasta afirma, porém, que ainda não há casos confirmados no Brasil e que as suspeitas são acompanhadas com apoio da Fiocruz e dos institutos Adolfo Lutz e Evandro Chagas.
Não há consenso na comunidade científica sobre o que provoca as reinfecções. Alguns pesquisadores apostam que sejam linhagens diferentes do vírus; outros, que se trata de falhas na resposta imune dos pacientes.
Assim pensa o infectologista Max Igor Lopes, que coordena a análise das suspeitas de reinfecções em São Paulo. Ele diz que a maioria dos pacientes tem sintomas leves da primeira vez, o que faz com que não produzam anticorpos suficientes.
“A gente faz acompanhamento sorológico dos pacientes. Colhe semanalmente e tenta avaliar a quantidade de anticorpos. Se estiver aumentando, sugere que a infecção é mais recente e, portanto, pode ter acontecido novamente”, explica.
Para Lopes, as reinfecções interferem pouco na corrida mundial por uma vacina contra o coronavírus, já que, a partir do momento que elas induzirem produção de anticorpos suficientes, o organismo do paciente conseguirá se defender.
Para o infectologista Jeová Keny Colares, à frente das análises no Ceará, se as reinfecções se tornarem comuns, conceitos como imunidade de rebanho podem ser postos à prova. “Há uma série de doenças infecciosas que as pessoas podem pegar várias vezes, como tuberculose, malária, sífilis, e vírus que não têm cura, como o HIV. Há doenças para as quais há décadas procuramos vacinas e não encontramos”, diz.
O neuroimunologista Alessandro Farias, da Unicamp, lembra que, além dos anticorpos, entram na proteção do organismo também os linfócitos T, que podem oferecer imunidade mais ampla.
Ele considera os casos comprovados insignificantes. “Tem milhões de pessoas no mundo infectadas, então quatro, cinco ou mil casos é muito pouco. Em termos de saúde pública, não é uma coisa com que a gente tenha que se preocupar.”
Gubio Santos diz que é cedo para falar em reinfecções. Ele acredita que o vírus possa ficar escondido no corpo e voltar a gerar sintomas quando a imunidade cai.
Enquanto divergem a respeito das reinfecções, os cientistas concordam que a higiene das mãos e o uso de máscaras continuam sendo essenciais para quem já foi infectado.
Pedro Martins/ Folhapress