Arte e política vivem em constante sinergia. Sempre foi assim. Poucas foram, no entanto, as figuras políticas que se firmaram como onipresentes no cinema, na televisão, no teatro, na música e na literatura do jeito que a rainha Elizabeth 2ª, morta nesta quinta-feira (8), fez.
Políticos eleitos, afinal, vêm e vão. Produtos culturais podem até capturar, direta ou indiretamente, o impacto de suas trajetórias na vida dos personagens sobre os quais se debruçam, mas estes costumam ser retratos efêmeros, de um local e época específicos.
Com a monarca mais longeva da história, foi diferente. Foram 70 anos no trono britânico, durante os quais ela foi retratada, parodiada, celebrada, criticada e problematizada nas mais diversas áreas da cultura.
Em parte, isso se deve ao charme inerente da coroa em sua cabeça, num mundo que diminuiu à inexpressividade boa parte das monarquias, mas não a britânica. Mas isso também é mérito da força cativante de alguém que cumpriu compromissos oficiais até dois dias antes de morrer.
Esse vigor talvez tenha sido capturado com maior primazia pela franquia “007” -o que é curioso, já que ninguém nunca a interpretou nos filmes do agente secreto. Seu reinado, no entanto, sempre pairou sobre as missões perigosas e por vezes estapafúrdias de James Bond.
Todos os 25 filmes oficiais da saga foram lançados em seu reinado, e um deles até faz alusão a ela no título, “A Serviço Secreto de Sua Majestade”, de 1969. Muitos gostam de mensurar a longevidade da monarca pelo número de primeiros-ministros que a acompanharam, mas uma escala igualmente interessante é a de intérpretes de Bond -foram seis os atores que a rainha, provavelmente, viu pedirem dry martini nas telas.
Talvez pelo retrato um tanto chapa-branca que “007” faz da monarquia e da sociedade britânica, a relação da família real com a franquia sempre foi de proximidade. Elizabeth esteve em várias estreias dos filmes e, nas Olimpíadas de 2012, chegou à abertura saltando de paraquedas -era um dublê, claro, mas que seguiu uma ponta dela como atriz, num vídeo com Daniel Craig.
Isso não quer dizer que as lentes das câmeras foram completamente bondosas, no entanto. Basta ver um dos grandes fenômenos do streaming atualmente, a série “The Crown”. Não que a rainha seja retratada como vilã, mas os episódios revelam uma figura humana, falha, por meio de um olhar que dificilmente se destina a símbolos tão inalcançáveis quanto a monarquia.
Nas duas primeiras temporadas, Claire Foy interpretou uma rainha insegura e que por vezes soou arrogante. Na terceira e na quarta, Olivia Colman encarnou a frieza e indiferença de uma mãe preocupada mais com o que os filhos transpareciam do que o que realmente sentiam.
A partir de novembro, Imelda Staunton assume a personagem, e deve navegar por tempos turbulentos e que minaram a popularidade da realeza, como a morte da princesa Diana.
Este, inclusive, foi o objeto de estudo de Stephen Frears no longa “A Rainha”, o melhor e mais complexo retrato que Elizabeth 2ª já ganhou nas telas. A trama foi um curioso exercício do que teria se passado nos aposentos e escritórios privados da monarca após o acidente que vitimou a princesa do povo.
Helen Mirren venceu um Oscar pelo papel monárquico, que reprisou na peça “The Audience”, que por sua vez lhe rendeu um Tony.
Em “Spencer”, outro longa interessado na passagem avassaladora de Diana pela família real, Stella Gonet fez uma rainha igualmente austera e avessa ao humor, mas se permitiu um olhar de delicadeza e, de certa forma, até de sororidade para a princesa interpretada por Kristen Stewart.
Divertidos foram os retratos joviais que “O Discurso do Rei” e “Uma Noite Real” teceram, o primeiro mostrando a monarca na infância e o segundo, na adolescência, imaginando como teria sido uma suposta fuga do Palácio de Buckingham para comemorar a vitória na Segunda Guerra Mundial.
Sem nem saber, Elizabeth 2ª ainda fez rir com “Os Simpsons”, “Saturday Night Live” e “Austin Powers em O Homem do Membro de Ouro”. Conquistou os pequenos nas animações “Carros 2” e “Corgi: Top Dog”. E fez a realeza da dramaturgia ir à realeza de fato, com Mirren e também Emma Thompson, num episódio de “Playhouse Presents”.
Há mais uma infinidade de filmes e séries que, diretamente ou não, atravessaram a vida de Elizabeth 2ª. Ela encerra seu reinado não apenas como uma figura política, mas também como um símbolo inquestionável da cultura pop dos séculos 20 e 21.
A monarca foi como um personagem muito bem escrito, tão fascinante e atemporal quanto qualquer outro daqueles que entraram para a história de Hollywood.