O STF (Supremo Tribunal Federal) manteve por 9 votos a 2 a decisão do ministro Gilmar Mendes de permitir que estados e municípios proíbam a realização de celebrações religiosas presenciais como forma de conter o avanço da pandemia da Covid-19. Com isso, na prática, o plenário da corte derruba a decisão do ministro Kassio Nunes Marques que liberava missas e cultos e afirmava que o veto de governadores e prefeitos a esses eventos era inconstitucional. Ao votar nesta quinta-feira (8), Kassio informou que irá ajustar sua decisão ao entendimento firmado pelo plenário.
Os ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Luiz Fux votaram para que prevaleça a decisão de Gilmar. O ministro Dias Toffoli, por sua vez, acompanhou a posição de Kassio. O voto dele foi considerado uma surpresa.
A decisão não obriga gestores estaduais e municipais a proibirem cultos e missas, mas declara que decretos nesse sentido são permitido e não violam a Constituição.
No sábado, Kassio atendeu um pedido da Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) e invalidou decretos de alguns municípios que vetavam a realização de atividades religiosas coletivas. O ministro estendeu sua decisão a todo o país. Dois dias depois, porém, Gilmar rejeitou ação do PSD contra decreto de São Paulo com o mesmo teor e mandou duros recados ao colega que liberou os eventos religiosos.
“Quer me parecer que apenas uma postura negacionista autorizaria resposta em sentido afirmativo”, disse.
O presidente da corte, Luiz Fux, então, remeteu o tema ao plenário. O julgamento foi iniciado na quarta-feira (7) e retomado nesta quinta (8).
Antes de Kassio, primeiro a votar hoje, começar a falar, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a palavra e tentou apaziguar a relação com Gilmar, que criticou o fato de a Procuradoria ter afirmado que ele não poderia ter tomado a decisão sobre o tema porque não deveria ser o responsável pelo caso. Aras anunciou a retirada da questão de ordem que visava discutir qual magistrado teria atribuição de relatar o tema.
Logo depois, Kassio defendeu a realização de missas e cultos com regras de distanciamento e disse que o veto a esses eventos viola a Constituição. O magistrado reclamou das críticas recebidas pela liberação de eventos religiosos e disse que foi chamado por parte de mídia, de maneira injusta, de “negacionista, insensível e até mesmo genocida”
Kassio afirmou que o vírus se espalha em bares e festas e que as celebrações religiosas não são culpadas pelo alastramento da Covid-19. O ministro questionou se prefeitos e governadores poderiam determinar o fechamento de veículos de imprensa e disse que a liberdade religiosa dever ter o mesmo tratamento. “Não é constitucionalmente tolerável o fechamento total das igrejas e templos”, afirmou.
O ministro disse que, quando tomou a decisão, 22 estados e 19 capitais estaduais tinham normas permitindo celebrações religiosas. “Em momento algum, mesmo estando convicto de estar protegendo a Constituição, o fiz remando contra o bom senso dos gestores brasileiros”.
Alexandre de Moraes divergiu do colega, citou os números da pandemia no Brasil e disse que parece que “algumas pessoas não conseguem entender o momento gravíssimo” que o país vive. O magistrado também criticou a atuação de advogados após o representante da Associação Centro Dom Bosco da Fé e Cultura, Taiguara Souza, pedir a palavra para fazer um desagravo a Kassio Nunes Marques.
“O respeito ao tribunal vem faltando desde ontem. Os advogados têm todo o respeito do tribunal, nós ouvimos com atenção as sustentações orais, agora espero que aguardem o julgamento. Porque isso não é jogo de futebol para se falar no momento que queira”. Moraes defendeu a constitucionalidade do fechamento das igrejas e templos como medida excepcional para conter a Covid-19 e disse que o “Estado não se mete na fé e a fé não se mete no Estado”.
“Onde está a empatia e a solidariedade de todos nesse momento? A liberdade religiosa tem dupla função: proteger todas as fés e afastar o Estado laico de ter de levar em conta dogmas religiosos para tomar decisões fundamentais para a sobrevivência de seus cidadãos”, afirmou. O ministro citou que nos séculos 12 e 14 líderes religiosos determinaram o isolamento social e questionou como atualmente, com o avanço da ciência, as pessoas ainda discordam dessa medida.
“Mesmo na idade média os grandes líderes religiosos defenderam, no momento das pandemias, o fechamento de igrejas. A necessidade de isolamento. Defenderam a transformação de igrejas e templos em hospitais.” O magistrado elogiou a atuação de Araraquara (SP) no combate à pandemia e citou o município como prova de que o lockdown é eficiente. “Há três dias não há uma morte em Araraquara. O isolamento social completo salvou a cidade”.
Fachin, por sua vez, aproveitou o voto para mandar recados ao presidente Jair Bolsonaro. “Inconstitucional não é o decreto que na prática limita-se a reconhecer a gravidade da situação. Inconstitucional é não promover meios para que as pessoas fiquem em casa, com o respeito ao mínimo existencial. Inconstitucional é recusar as vacinas que teriam evitado o colapso de hoje”, disse.
Barroso foi na mesma linha e afirmou que o Brasil parece enfrentar a pandemia com “improviso, retórica e dificuldade de lidar com a realidade”. O ministro se disse impressionado com o fato de o governo federal não ter montado um comitê com os principais especialistas na área do país para elaborar medidas de enfrentamento à doença. “Ciência e medicina são, nesse caso particular, a salvação. O espírito, ao menos nessa dimensão da vida, não existe onde não haja corpo. Salvar vidas é nossa prioridade”.
Já Rosa Weber afirmou que decretos que vetam os cultos e missas no “específico contexto” atual são aceitáveis. A magistrada afirmou que “negar a pandemia ou a sua gravidade não fará com que ela magicamente desapareça”. “Não é possível brincar de faz de conta em momento de tamanha gravidade”, disse. “A nefasta consequência do negacionismo é o prolongamento da via crucis que a nação está a trilhar, com o aumento incontido e devastador do número de vítimas e o indesejável adiamento das condições necessárias para recuperação econômica”, disse.
Cármen Lúcia afirmou que a religião é “forma de vida e não se empenha na morte”. “E essa pandemia mostra isso, essa doença mata”, afirmou. “Por isso, a aglomeração é um ato até de descrença, de falta de fé, de falta, portanto, de capacidade de pensar no outro”, afirmou.
Lewandowski afirmou que, “tendo em conta a impressionante cifra de mais de 4 mil óbitos ocorridos nas últimas 24 horas, não há como deixar de optar pela prevalência do direito à vida, à saúde e à segurança sobre a liberdade de culto, de maneira a admitir que ela seja pontual e temporariamente limitada até que nós nos livremos desta terrível pandemia que assola o país e o mundo”.
Já Marco Aurélio disse que não há a necessidade de abertura de templos e igrejas. “Se queremos rezar, rezemos em casa”, sugeriu.
Último a votar, Luiz Fux afirmou que estudos apontam locais fechados em que pessoas conversam e socializam por longo período como não recomendáveis nesse momento da pandemia e citou que eventos religiosos estão incluídos nessa lista. “A fé não é cega, presta deferência à ciência. É momento de deferência à ciência”, disse.
Na primeira sessão, as partes do processo, entidades religiosas, a AGU (Advocacia-Geral da União) e a PGR (Procuradoria-Geral da República) usaram a palavra e apenas Gilmar expôs sua posição. O voto de Gilmar foi marcado por críticas às sustentações orais aos chefes da AGU, André Mendonça, e da PGR, Augusto Aras.
O ministro afirmou que Mendonça parecia ter chegado de uma viagem a Marte por ter citado lotações no transporte público como se não tivesse nenhuma responsabilidade sobre o tema.
Em relação a Aras, o magistrado afirmou que sua atuação beirou a “litigância de má-fé” por ter afirmado que o responsável pelo caso deveria ser Kassio Nunes Marques.