“Eu ia vir de índia, mas não pode né?”, disse Rita Cadillac em cima de uma espécie de minitrio elétrico, que, na verdade, era uma caminhonete adaptada, com um DJ na parte traseira do veículo. O automóvel apelidado de “brega móvel”, uma das atrações presenciais da Virada Cultural deste ano, passou pelas ruas do centro de São Paulo, deixando moradores da região confusos sobre o que era o barulho invadindo suas janelas.
Neste ano atípico, o tradicional evento cultural de rua da capital paulista foi atrasado e aconteceu neste fim de semana –mas majoritariamente na internet, com shows e apresentações sendo transmitidos no canal do evento e em plataformas como YouTube e Twitch. Até a conclusão desta edição, a prefeitura não havia divulgado o número de espectadores.
Além do “brega móvel”, outras iniciativas tomaram as ruas. Na traseira de um caminhão, diversos pianistas passearam homenageando Beethoven e tocando o ciclo das 32 sonatas do compositor. Mas o principal palco da Virada foi o Theatro Municipal, com cadeiras vazias por causa da pandemia de coronavírus.
Arnaldo Antunes fez uma das melhores performances desta Virada. Ele tocou ao lado do pianista Vitor Araújo. A dupla se apresentou no começo da tarde deste domingo, dia 13, apoiados na atmosfera intimista dos discos “Qualquer”, de 2018, e “O Real Resiste”, lançado em fevereiro deste ano. Em um roteiro emocionante, a dupla mostrou que até mesmo o gesto de amar pode ser visto como uma construção política. Arnaldo e o jovem pernambucano fizeram de sua apresentação uma oração à vida e ao amor, bem como uma ode à poesia em tempos de brutalidade.
Na noite de sábado, dia 12, Criolo também se apresentou no Municipal e mostrou versões renovadas de sucessos antigos como “É o Teste” e “Até Me Emocionei” –de quando ele ainda era Criolo Doido, nos anos 2000– e músicas recentes, caso de “Boca de Lobo”, de 2018. Acompanhado por dois DJs, ele cantou sentado, passeou pelas cadeiras vazias do teatro e citou nomes de pessoas negras mortas nas mãos da polícia.
Outro que sofreu com a falta de pessoas na plateia do Municipal foi o DJ Rennan da Penha, que dividiu o horário com MC Kekel. O funkeiro carioca emendou versões aceleradas, sua marca registrada, de funks de MCs como Ludmilla e Dricka, além de sucessos próprios, como “Talarica”.
Já o paulistano cantou seus hits minimalistas –destaque para “Namorar Pra Quê?”. Mas Kekel também desafinou e deixou claro que, sem a zoeira do público, sua arte é frágil.
Ainda na noite de sábado, Elza Soares fez o show online “Onda Negra”, ao lado de Flavio Renegado. O repertório trouxe “Mulher do Fim do Mundo” e “Coração do Mar”, do disco “A Mulher do Fim do Mundo”, de 2015, e também faixas conhecidas de Renegado, caso de “Black Star”. Eles cantaram “Volta por Cima”, de Paulo Vanzolini, “Malandro”, de Jorge Aragão e Jotabe, e “Meu Guri”, de Chico Buarque, além de uma versão funkeada de “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho.
Elza Soares e Flávio Renegado se apresentaram no Palco Plural. “Renegado, o que precisamos fazer para não nos matarem mais?”, perguntou Elza. “Elzinha, temos que gritar por justiça, porque a nossa carne não é mais a mais barata, nem está de graça”, respondeu Renegado. A dupla em seguida apresentou “A Carne”, repaginada com letra adaptada para o presente –”a carne mais barata do mercado foi a carne negra, e agora não é mais”.
Além das performances musicais virtuais, a Virada teve de outras atrações, como a performance da Cia de Dança de Diadema nas novas fontes de água do Vale do Anhangabaú, o espetáculo “PinaCanção”, na Pinacoteca, e um painel drive-thru de grafite e arte urbana.
Nas redes sociais, porém, o público se engajou pouco com as atrações. Muitas pessoas se surpreenderam com o fato de a Virada ocorrer neste fim de semana. Durante a pandemia, o sábado e o domingo de Virada Cultural no centro de São Paulo é quase como qualquer outro.
Folhapress