Num jogo de videogame ainda inédito, o personagem principal transforma água em vinho, multiplica pães e peixes, anda sobre a água, enfrenta demônios e acaba sendo crucificado. O nome já entrega de cara o que é. “I Am Jesus Christ” é um game em primeira pessoa em que o jogador controla Jesus Cristo em seus últimos anos na Terra e simula milagres. O trailer de anúncio gerou 5,3 milhões de visualizações e um sem-número de piadas.
“Joguei até o fim, mas morri. Demorou três dias para dar respawn. Tem que consertar esse bug”, postou um usuário. Só que o jogo não é uma sátira, mas uma adaptação que se pretende respeitosa. “Desde o início, nós nunca quisemos fazer um jogo de humor. Eu queria algo realista, baseado no que se lê no Novo Testamento”, explica Maksym Vysochanskiy, o criador do jogo e CEO do estúdio SimulaM.
“I Am Jesus Christ” é desenvolvido na Polônia, não só uma potência emergente dos games, mas também um dos países mais católicos do mundo -87% da população. Vysochanskiy não se define católico, mas simplesmente cristão. “Para fazer um jogo desse tipo, você tem que ser um pouco religioso”, diz. Ele nasceu na Ucrânia e cresceu sob o regime soviético. “Falar sobre Deus podia levar à cadeia ou até à Sibéria. Ouvir músicas como as dos Beatles, também”, conta.
Talvez não tão populares quanto Jesus, os Beatles não inspiraram Vysochanskiy a fazer um game sobre eles. Por isso, ele nega que o desejo de fazer um jogo sobre Cristo tenha a ver com seu passado na ateia União Soviética. “Existem vários filmes sobre a Bíblia. Eu vejo videogames como uma nova forma de arte, então por que não fazer um jogo sobre Cristo?”
O ucraniano conta que quando começou a fazer contato com publicadoras, muitos riram da sua cara. Designers chegaram a recusar trabalhar no projeto, alegando receio de passar por vexame. Mas Vysochanskiy acabou conseguindo fechar contrato com uma das maiores empresas de games do país, a PlayWay, que só fica atrás do gigante CD Projekt –de “The Witcher” e “Cyberpunk 2077″– e da 11bit na lista das mais valiosas na Bolsa de Varsóvia.
Segundo Vysochanskiy, ainda é cedo para dizer que existe um nicho em ascensão de jogos bíblicos e religiosos. Mas uma das subsidiárias da mesma PlayWay trabalha com um outro jogo que fala de religião -mas sem a aura teológica de “I Am Jesus Christ”. “Priest Simulator”, também inédito, tem visual e humor escrachados. No trailer do game na plataforma Steam, o jogador controla um padre que exorciza, fala “mamma mia”, dá tiros em Satanás, mostra o dedo do meio e fica bêbado.
Há ainda quem escolha não entrar no mérito teológico e retratar a religião sob o ponto de vista histórico. O também polonês “The Pope: Power & Sin” tem como protagonista Rodrigo Borgia, o papa Alexandre 6º, que mata, mente, manipula e peca bastante. “Nós queríamos mostrar como ele usava a religião para manipular as pessoas e às vezes demonstrava remorsos. É um personagem tridimensional”, explica Stefan Szymczyk, que é roteirista do jogo. Szymczyk afirma que não recebeu reações negativas relevantes, mas lembra de uma acusação de que eles estariam tentando atrair público pela polêmica, o que ele nega.
Não só o cristianismo é retratado em games. E não é de hoje que jogos tocam religião. Em 1999, foi lançado o educativo “Islamic Fun!”, desenvolvido no Reino Unido. Com um design bem simples, cheio de degradês e fonte Comic Sans, o game ensina os princípios islâmicos a crianças.
Aqui no Brasil, já há jogos inspirados em religiões de matriz africana. Em “Inner Maze”, o jogador controla um personagem -um médium- que se move por um cenário que é uma espécie de tabuleiro de xadrez estilizado. Ele tem de se mover, casa a casa, até chegar ao destino final, após superar obstáculos e puzzles.
Para vencer determinados desafios, entidades podem ajudar. E cada uma delas tem habilidades específicas.
Exu atravessa fogo e abre caminhos, Pombagira tira obstáculos, Preto Velho recupera a energia do jogador, Erê pula por cima das barreiras. O criador de “Inner Maze”, o designer de games e pesquisador Caio Chagas, que é praticante da umbanda, teve a consultoria de uma mãe de santo, autora de livros sobre o tema, para desenvolver o jogo.
“O pessoal umbandista que já faz parte do público gamer gostou bastante. Mas mesmo em uma religião universalista como a umbanda há traços de conservadorismo”, diz Chagas. Ele diz que chegou a ouvir de uma pessoa a crítica de que a umbanda é muito sagrada para ser retratada dessa forma. “Preconceito, certeza”, é o diagnósticos de Chagas. “O que ficou claro é que há pessoas que não consideram o game uma coisa séria o suficiente para retratar algo sagrado.”
Veja o trailer abaixo: